Dia 2518 sofrendo de reminiscências.
O som das lembranças parece cada vez mais alto. As memórias, espaçosas, invadem cada canto da cabeça. Um coro de vozes estridentes me negam o direito à solidão.
Vou ao encontro de amigos na esperança de uma solução pensada por mentes mais silenciosas.
-“Estou com problemas de memória”
- “Memória fraca? Eu tenho um remedinho ótimo, pera!”
- “Quem me dera! Justamente o oposto, memória forte com um touro
- “Ué, mas pra isso não tem remédio
Era o que eu temia.
Depois do silêncio desconcertante, cada cabeça presente reuniu papel e caneta nervosos que, em uníssono, escreviam possíveis socorros.
O primeiro foi um neurologista. “Vamos escanear esse cérebro! Do cerebelo ao último ossinho do crânio. Nada escapa das máquinas”, ele me disse. Tomografias, raio-x e ressonâncias trilharam um belo mapa para lugar nenhum bem dentro da minha cabeça. O paradeiro do causador de problemas continuava desconhecido.
Numa segunda tentativa, fui ao psiquiatra, que foi direto ao ponto: “Esse teu problema é falta de sono! Quanto mais desperto, menos esperto. Essas pílulas vão te ajudar. Não vai sobrar memória pra contar história!”. Sobrou. Não só sobrou quanto contou. Não uma, mas várias histórias. As mesmas histórias. Todas codificadas, desconfiguradas, abstratas...mas ainda as mesmas, povoando meus sonhos como ervas daninhas.
Chega, resolvi tomar medidas drásticas, fui à esteticista. Ela olhou para a cara que estampava aquela ruidosa cabeça e disse: “Querida, você não vê? São das rugas toda a culpa! As rugas são a casa da memória. Cada rachadura nesse rosto dá notícia do tempo. Cada marca abriga uma lembrança. Botox é a solução. Vamos paralisar!” Mas não dá para paralisar o tempo. O futuro sempre chega aos que resistem, e o passado nunca passa.
Sem esperança, fui ao analista. Era o último recurso. "Fale!", disse ele, "Fale sobre essas memórias". Olhei para ele enfezada: "Acho que você não entendeu, eu não quero falar, dar mais voz à elas, eu quero silenciar, esquecer!" ao que ele respondeu "Mas eu não disse para dar voz à elas, é a sua voz que quero escutar. Fale!"
E eu falei. Um pouquinho. Depois um pouco mais. E depois muito. E continuei falando. E a medida que fui falando, as vozes ensurdecedoras das memórias foram abaixando, não se calando, mas entrando em harmonia com a minha. Falando junto a mim, não por cima.
Entendi que não se tratava de abafar, mas de falar junto.
Hoje respondo quase orgulhosa a derradeira pergunta
- Você sofre de falta de memória?
- Não, de excesso!
Nathália Yohanna - Psicóloga Clínica
CRP: 05/62211
“Somos as palavras que trocamos”
Obrigada por ler!